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  • Foto do escritorUrsula Rösele

Tinder e a falência dos afetos

Atualizado: 27 de mai. de 2019

Tenho algumas histórias de amor bonitas. Minha primeira vez, uma tarde com um ex-namorado em que ficamos um tempo que parecia uma eternidade apenas olhando nos olhos um do outro, o dia em que fiquei noiva. Tenho histórias tristes envolvendo essas três pessoas também. Fins dolorosos, umas mágoas que ficaram, um esvair do tempo bom que nos faz perder a esperança na utopia de um a dois, terno e doce.


Estou divorciada há um ano e quatro meses. Antes disso foram doze anos de um relacionamento bastante intenso e mais três com outra pessoa antes dele. Quinze anos.


É clichê dizer que o mundo mudou, claro. Sempre muda e às vezes até pra melhor.


Mas sei não.


Está tudo meio revirado e dizer isso também é óbvio.


Optarei pela obviedade, se necessário. Porque não se trata de descobrir a América. Há umas coisas meio padrão nessa parada toda.


O meio em que “circulo” é insuportável. Circulo entre aspas, porque mais evito do que me misturo. O meio cinematográfico em BH, em sua grande maioria, é misógino, segregário e machista. Uma hora, se eu tiver paciência, abordarei isso.


No meu trabalho a idade adulta chegou. Praticamente todes casades.


Um dia, depois de umas amigas sugerirem, entrei no Tinder. Vamos ver de qual é o tal do app de “paquera”.


À parte o ‘paraíso’ antropológico que nos faz acreditar que o apocalipse já aconteceu, venho constatando a absoluta falência dos afetos.


Vivemos um tempo bom de uma bolha que parecia prenunciar um mundinho menos merda.


Feministas, as causas LGBTQ+ e negra, índigenas... um soprinho de visibilidade, um cadinho de decência.


Aí... enfim... esse (des)governo. Esse desalinho. As máscaras no chão, o desfilar da barbárie.


Tenho visto, apesar dos pesares, mais pessoas falando acerca da sexualidade da mulher, de tantra, orgasmo, etc.


Mas as questões nunca vão mudar enquanto os homens permanecerem no mesmo lugar que sempre ocuparam.


Porque, sei lá... fez xixi e abaixou a tampa do vaso a gente já aplaude, agradece ao universo.


O que tenho visto é um desfilar de profunda indelicadeza. E sim, estou sendo extremamente sutil.


Não é distante, é próximo também. Amigos, conhecidos, pessoas que foram aparecendo em minha vida.


Um que homem, se a gente sorri, já sente medo.


Se chamamos pra um café, apavoram.


Se convidamos para uma cerveja, já esperam que surjamos com véu e grinalda.


Meus caros... desçam desses pedestais patéticos.


Não adianta falar bonito de masculinidade tóxica, fazer filmes tocantes com mulheres, fazer arte, ter um olhar supostamente poético de mundo, postar palavras de incentivo à libertação da mulher... e seguirem com um comportamento indelicado, indefinido, abusivo e violento.


Algumas coisas que andei vendo nesses aplicativos: armas. A quantidade de homens posando com armas só não me estarrece, porque eu leio jornais e acompanho as declarações desse lixo que ocupa a presidência.


Um dia acho que até sai uma crônica.


Homens posando em piscinas, fundos sofisticados, tais como neve, coberturas e carros esporte.


Muitos óculos escuros.


Aquela selfie que nos assegura de seu egocentrismo: não se olha para frente, mas para sua própria imagem na tela do celular. E um sorriso, o autoamor de plástico.


Alguns, provavelmente esquerdo-machos (mesmo diagnóstico, nome mais sofisticado), com frases de efeito para pegar mulher.


Incontáveis fotos em academias de ginástica.


Fotos com amigas (namoradas, sei lá).


Com amigos sarados.


Boates.


Segurando cervejas, com camisas de times, com crianças (os piores), cachorros.


Ausência de fotos e a frase clichê: se quiser saber, deslize para a direita.


A direita... risos.


Inúmeros homens casados afim de escapadas.


Casais querendo ménage, sempre com fotos dos corpos das mulheres do casal.


E emoticons, vários deles. Temos que decifrar hieróglifos para saber o que a pessoa não se ocupou em dizer.


Um cardápio grotesco, um reflexo estarrecedor de uma sociedade desprovida de afeto.


Poxa Ucha, que careta você. Sexo, liberdade.


Sim.


Para os homens, sempre.


Um dia comecei a conversar com um rapaz, advogado, não sei se Bolsominion, porque em meu texto eu os espanto, mas provavelmente ele não havia lido.


Ao ser perguntada do que gosto, fui respondendo coisas aleatórias, pitorescas, para ver se havia um cadim de senso de humor ali.


E falei que gosto de gorgonzola (amo, aliás).


Descobri que o digníssimo tem “fetiche” em queijo. E daí foi ladeira abaixo.


De querer passar gorgonzola em mim a me ver sendo seduzida por outros homens, desfiz o match.


Match.


Termo americanizado e diagnóstico baseado em praticamente nada para dizer que, bobeando, rola da gente trepar.


Não me espanta que tantas mulheres venham buscando prazer com outras mulheres.


O feminino é infinitamente mais interessante, intenso, febril.


Homens.


Vocês precisam se reinventar.


Estamos diante de um governo torpe cuja base de todas as preocupações é a sexualidade... elementar, não?


Aprisionemos os corpos, encarceremos as potências todas. A potência negra, feminina, lésbica, trans, acima de tudo.


Não ousemos gozar.


No fundo, me entristece ver como temos medo de nós.


É de olhar pra dentro que a gente foge.


Porque o outro pode até tentar nos definir, mas estar ali, lado a lado com outrem, é ser convocada (o) ao eu, diariamente.


Olhar pra dentro dilacera.


Escancara, desafia, apavora.


O toque, esse passa longe.


O cheiro não importa.


O flerte inexiste.


Tudo se resume à carne: descartável, temporária, crua, à vácuo.


Tudo se resume à imagem: estática, pouco criativa, alusiva ao que o outro quer.


Quanto mais me descasco, menos acesso.


Quanto mais falo, mais me escapam.


Quanto mais falo, menos desejo.


Nada é mais potente que uma mulher que goza, li numa camiseta hoje.

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