
Ursula Rösele
Manhã de carnaval
Acordou de súbito sem saber ao certo se havia estado acordada o tempo inteiro até ali
Ficções, ela pensou
Hoje é carnaval
Tomou banho, um café reforçado e diante do espelho tentou fantasias
Os olhos, ela os encheu de cor e glitter
Pensou cuidadosamente em cada detalhe
E foi
Chegando lá começou a descer a ladeira
Podia ouvir os foliões ao fundo, mas não identificava bem a canção
O eco da alegria temporária tomava todo o bairro
Os corpos, as calçadas, os meneios de cabeça daqueles que se esgueiravam nas janelas da vizinhança
Ela se perguntou: “por que não pulam aqui? Não se juntam a nós?”
O que pensa aquela moça na varanda, com um arco de unicórnio na cabeça e o olhar mais triste do beco, do bloco, da janela onde ela sustenta seu cotovelo, parecendo uma namoradeira com aura de arlequim
Um pouco ali, um pouco em um lugar que o olhar da moça para a outra não alcança
Há cor nas fachadas, mas muita tinta e telha faltante
Saltitantes passam carnavalescos, aceitando esse ‘altas’ da vida
Uma não tão sutil suspensão de tempo, das crenças e descrenças
Todos ali reunidos. Todes, todxs.
Ela pensa, talvez tão reflexiva como a moça do arco de unicórnio na janela: o todo está ali
De tudo
Da convivência pacífica que podia durar para sempre
Nos sorrisos soltos, nas fisionomias que reconhecemos no intervalo de um bloco ao outro
O moço da sombrinha, o cara da cabeça de peixe, a jovem que te ajudou a passar na viela, as figuras com os isopores
Entregue ela estava, às elucubrações de carnaval ou da vida toda, não se sabe
Diante do carro de som ela move seus quadris e cerra os olhos fechando aquele tempo-espaço para si e a bateria
Os atabaques ecoam na vizinhança enquanto ela vira sutilmente o seu rosto e encontra o dele
Quanto tempo faz?
Atraída pela ternura de seu olhar, ela se aproxima e os dois se abraçam
O bloco para, não sei se mesmo, se sonho, se ficção
A sua ficção
Seus lábios, próximos do ouvido um do outro
“Claro que eu te veria aqui”
“Claro”, responde ele
A mesma voz, a barba maior, um pouco grisalha das dores que ela não o viu passar
“Que saudade de você”
“Nossa, que saudade de você”
Ela ouve novamente o moço do mel com cachaça, os risos, os beijos alheios, o toque do atabaque
Ele diz: “esta é fulana”, e só então ela nota a outra moça
“Oi, prazer. Bom carnaval para vocês”
E retorna, silenciosa, ao ponto de origem
De volta à caixa de som, não sabe dizer se toca uma gira, se torna a fechar os olhos
Ou abri-los pela primeira vez
E pensa no amor
Na amplitude do amor
Em sua fluidez
Nas saudades todas
A moça suspende a mente dali e vai para arredores outros
Lembra da carona após a escola, do primeiro e avassalador amor
Das milhares de cartas trocadas, escritas à mão
Da dor absurda no peito quando se despediam à noite
De só acalmar com o toque do telefone fixo
“Cheguei, te amo, até amanhã”
Lembra de um outro tempo e corpo, os dois, deitados no chão da sala
Quando ela soube que iria embora da cidade e ele chorou feito criança
Coube a ela, no caminho para a rodoviária, carregar seu ursinho cheio do perfume dele
Um gole iria com ela
Ao menos aquele gole
Ou daquele outro amor, de como passava as mãos em seus cabelos lisos e o mundo dela parava
Aquele dia, num sítio, os dois espremidos na parte de baixo do beliche
Olho no olho, por horas, talvez
O mundo poderia ter acabado ali
Ela lembra também de um tempo outro
De ter havido Paris
De acreditar que sempre a teriam
Como um lugar imaculado a aguardá-los caso a vida desse suas voltas
Sente saudades, desses amores todos e de perceber quantos foram
E do quão bonito foi amá-los
Se percebe pronta
Ao suspiro vindouro que há de chegar e ficar de vez
Por um instante retorna ao bloco, à rua, ao beco, à sina
E ainda o vê observá-la de soslaio, com o mesmo sutil sorriso no rosto
Ela pensa: “é, também me sinto assim”
E vai, torna a descer a ladeira
Naquele ponto a familiaridade dos rostos a acalma
Ela caminha e observa, talvez não mais ali, há muito tempo não ali
Quiçá nunca antes e agora ali como jamais estivera
Vê os beijos ardentes, as mãos dadas
Todos a sorriem
Como se a conhecessem
Quase a sua família
De carnaval
O escuro toma conta das ruelas e os corpos coloridos dão lugar a feixes de luz e cheiro de cerveja no chão quente
É noite na avenida
O bloco passou e o som vai cessando aos poucos
Para casa ela leva suor, glitter e saudade
Até o ano que vem