
Ursula Rösele
Miscelânea
(1) Ignorância e fé
Fé é um trampo.
Evolução espiritual é um trampo. Seja na forma da culpa, da imposição de certas condutas, ou mesmo na crença de que estamos aqui – pensemos em um plano (gosto de crer nisso) – para crescer, errar, transcender... é a porra de um trampo.
Há uma condição intransponível do lado de cá. A humanidade.
Há o tempo da humanidade também.
Tem hora que longo, tem hora que voa.
Outubro já, tá voando.
2018 estava voando e foi o ano mais longo da minha vida.
2017 voou, 2003 deve ter voado, 1995... não sei.
A gente caminha, tropeça, numa parada meio Banco Imobiliário (o jogo não foi mencionado por acaso). Vai, ganha, perde, volta casas. Imóveis, bairros nobres, casamento, filhos. Delírios da branquitude. A prisão de uma pele opressora.
Porque a tal da fé, apesar de ser algo a se partilhar, sempre nos retorna a um estado de imensa solidão. Eu e a minha fé. Eu e a minha crença. Eu e meus orixás. Eu e minhas velas. Eu e meus incensos. Eu e minhas ervas. Eu e o Reiki. Eu e a Umbanda. Eu e meus rituais de criação própria. Eu e a necessidade de levantar. Perseverar, dizia uma amiga querida.
A consciência, inteligência, sabedoria – na falta de um único termo, ou mesmo de saber qual devo usar – também são um trampo.
Porque sair de certa anestesia social joga a gente num lugar extremamente solitário.
Moro em um bairro nobre, me identifico com nada. As árvores, talvez. Não sei se elas podem ser consideradas nobres. Estou aqui de abelhuda, perto do trabalho, prédio velho, dá pra pagar no sufoco. Quatro minutos do trabalho, uma benção.
Ter fé é confiar em um tempo que não controlamos.
Que virá, que passa.
Que tudo está onde deve estar.
Confiar no divino, porque no humano tá osso.
Em um caminho que parece bizarro, mas uma hora fará sentido, dizem.
Evoluir é um troço sem trégua. O tempo inteiro.
Eu tropeço de um tanto.
Toda hora que dou um passo, abre-se um portal, um som angelical e eu... volto 100 casas.
O velho vício.
O medo do ar.
O costume do abuso.
O terror da morte.
(2) Das mortes diárias
Um dia uma amiga falou disso. Das pequenas mortes diárias.
Há um conforto em fingir que está tudo bem. Imagina todo mundo surtando, dizendo como está, querendo ouvir aos outros.
Não dá tempo.
Tenho de lançar notas, faltas, responder e-mails, planejar trabalhos, corrigir provas, projetos, pensar nos meus, fazer a unha, arrumar a casa, colocar o lixo lá fora, brincar com o meu filho, antecipar as crises, fazer as contas, planejar como lidar com as dívidas, passar roupa, ler livros, estudar, flertar, emagrecer, comer bem, molhar as plantas, escrever todos os textos que penso o dia inteiro, fazer suco verde, lavar o carro, postar no Instagram, levar e buscar a minha mãe na hemodiálise.
Levar. O mesmo caminho, a escuta, joga a dor pra dentro, sorri, fala palavras de incentivo e esperança. Tosse. Esofagite, certa tristeza constante, insônia.
Busca. Sangue no cobertor, macas, pessoas que te sorriem, uma doçura na dor. Como há doçura ali. E dor.
Tenho aprendido um absurdo.
Há uma moça, a qual minha mãe se refere como ‘a moça que chora’. Ela parece nova, magrinha, o rosto um pouco inchado, os cabelos ruivos, curtos, um olhar que sempre está ausente, sério, raivoso, talvez. Fones de ouvido. Ela nunca respondeu quando eu dou ‘bom dia’, ‘fica com Deus’. Vou continuar.
Há um senhor, que vem acompanhado por outro senhor, parece o seu irmão. O que faz hemodiálise sempre sorri pra mim, com uma alegria que não sei de onde ele tira, e seu gorro de lã. Seu irmão não fala uma palavra. Também não responde quando eu cumprimento. Um dia, eu e ele no elevador. Segundo andar e um silêncio sepulcral. Acompanhantes. Pegamos a cadeira de rodas, guardamos os cobertores, empurramos, ‘oi’, ‘tchau’... três vezes por semana a mesma coisa. Ninguém tem energia pra conversar.
Acho que já guardei todas as fisionomias. O olhar triste dos acompanhantes. A partilha no primeiro andar. Conversam sobre futebol, programas insuportáveis na TV, levam lanches para o café. A moça do café, um anjo. Um senhor que fala alto e é pura simpatia, mulheres que vendem panos de prato, outras no celular, eu muda, mas observadora. Certo sorriso cúmplice, mas só chego para buscar, não dá tempo para vínculos.
Meu carro já faz o caminho sozinho.
No meu silêncio, um universo.
Talvez um dia eu realmente consiga escrever sobre.
(3) Manjericão, arruda, sálvia, alecrim, hortelã, camomila, espada de São Jorge
A sisudez da forma.
O desfilar dos versos.
Um blá blá blá danado.
Tenho manjericão roxo, manjericão padrão, manjericão basílico
Adoro manjericão, nota-se
Meu hortelã tá bem borocochô
A camomila não deu conta
A arruda tá firme e forte (graças!)
A sálvia, oscilante
O alecrim marromeno
As espadas de São Jorge enormes, vistosas
É linda a simplicidade das plantas
Eu passo na cozinha, elas meio murchinhas
Jogo água, um tempo depois, elas sorriem em folhas erguidas
Eu sorrio de volta
A gente se entende
De onde vem a água
Pra onde sopra a brisa
Quanto tempo temos no tempo?
“- O que te dá prazer?”, me perguntou um amigo outro dia.
Não sei, respondi de pronto.
Depois: dirigir.
Gosto de fechar os vidros, ligar o ar e colocar o som no último volume.
Nos últimos quase dois anos fiz e refiz um caminho de inúmeras formas
Gritando, chorando, xingando
Sorrindo, dançando, cantando
Eu e laranjinha
Eu e a ilusão do movimento, do freio, do acelerador, de controle
(4) Correr
Já fui viciada em exercícios físicos
Aos 12, cismei que queria ser jogadora de vôlei
5 horas de treino por dia
Jogava na rua, era da equipe do Ginástico
Não tinha a função de líbero nessa época, uma pena
Eu curtia defesa
Acho que era ok
Com 1,70m não tinha futuro
Aos 19, viciei em academia
5 horas por dia
Body attack, body pump, body balance, body step, body combat, RPM e musculação
Já tive 19% de gordura corporal, condicionamento físico de atleta profissional
Quem te viu, quem te vê, não é?
Já fui viciada em corrida
Não, não eram 5 horas
Mas eu corria até com febre
Devo voltar, em breve.
Dos vícios todos, acho que esses foram os melhores até hoje
(5) O mar
Quero me perder nas suas ondas, abraçar o seu sal, sujar os dedos do pé de areia
Quero entrelaçar os dedos, encontrar o todo num único sorriso
Quero largar de lado a dor da vida
Esquecer que crescer é um porre
Tomar porre de sol, de gozo, de vento, de brisa
Quero te abraçar na minha incongruência
Quero escrever os livros todos
Quero filmar, finalmente
Quero nos reconhecer numa canção
Quero dormir sonhos vividos
Quero acordar na plenitude
Quero reconhecer o meu desejo
Quero vibrar a vulva e o resto
Quero o descanso da vida que flui
Quero a paz, no apesar de tudo
Quero o regaço
A fala
O retorno
A resposta
O mergulho
Quero a vida partilhada
A evolução com-partilhada
A revolução
A re vou ação
Quero a benção
O mantra
A gira
A reza
Quero os lábios roxos de vinho
O sussurro ao lado
O alívio do encontro
Quero o abandonar da hipocrisia
O afeto definido
A coragem do amor
Quero o sol nos cabelos, a chuva nos olhos, o vento na alma, o fogo no corpo
Quero dormir
Quero que o tempo do lado de cá seja o melhor dos acasos
Quero o desvio, o fim do tédio, o riso
O amor, o que quer que seja
Na falha, no recomeço, no reboot
Quero os pés na terra, as mãos na água, o cheiro nas folhas
De uma querência danada
Se fez a paz de estar, enfim, onde deveria