Ursula Rösele
Quarentena em devaneio - onze deles
#11
“Epitáfio de quarentena” Um pouco cedo, talvez, para um epitáfio. Volátil, provavelmente. O quê escreveremos em nosso epitáfio de quarentena? Essa inscrição valor de carimbo terá, no sentido de imprimir os privilégios, as inteirezas, os vazios de alma, a predisposição a um novo caminho, os retrocessos tantos. Levaremos um bom tempo para mensurar o que tem sido isso tudo (‘foi’ - quando a vida remota será pretérito?). Números de mortos, algarismo, dado sem singularidade, valas comuns, nós em riste, nós sem semblante. Nós. As repartições mundanas nos conduzindo a um fim no grupo que negamos: todes ao pó. A possibilidade diária do descompasso, do descontrole, da ira, até. O desgoverno que nos desgoverna, que desce a ladeira no ponto morto, à morte, aos mortos, “e daí?”. Já tivemos melhores Messias. Já louvamos melhores discursos. Vimos vivendo a redução. Do toque, do olhar, dos cheiros de fora, dos corpos - outrora táteis, por ora radioativos. Olhos baixos, um metro e meio de distância, o sorriso escondido na máscara cirúrgica. A vida era logo ali. Era mesmo? Hoje me divido em mundo inteiro/mundo eu. Numa expressão matemática anti-lógica, posto que é soma, multiplicação, por vezes subtração, ao mesmo tempo. Mundo inteiro: profissionais da saúde, lixeiros, entregadores, funcionárias(os) dos correios, varredores de rua, funcionárias(os) de supermercados, farmácias, tanta gente. Moradores de rua. Moradores de comunidades periféricas. Indígenas. O Norte do Brasil. Colapso no SUS. Desmatamentos. São Paulo, Amazonas, Pernambuco, Ceará. Estados Unidos, Espanha, Itália... Wuhan. Pandemia. Mundo eu: mesmo sem tempo, há quanto dele não havia eu mesma? Eu em silêncio. Eu e Antônio. E a casa, o alimento, o rezo, a reza. Há quanto tempo o não-espelho, a rápida passagem nos espaços todos, sempre em pressa, sempre desatenta, sempre mãos de polvo tudo ao mesmo tempo agora. Os clichês, as lives de yoga, as imposições de uma vida em quarentena. Olhar pra dentro, recolher-se.
O retorno indelével da memória, canceriana eu toda. Ariana, eu também. Iemanjá, Oxóssi, Obaluaê e Iansã. E um mapa astral que não domino, mas sei que há, ali ao menos, uma pá de coisa no lugar. Porque essas linhas sou eu. O desarranjo e a beleza sou eu. Descobrir a si na pandemia, o maior dos privilégios. Tem a pá de cal, que nos jogam. As flores que a gente deixa. As velas acesas, as vozes apagadas. Entrei numa fase ‘namastê’. Entendendo os ciclos como parte de agora. Amanhã não sei como será. Mas nunca soubemos, não é? E insistimos, tolos nós, em fazer todo dia sempre igual - já diria Chico. A ressignificação dos objetos. Maçanetas, portas, corrimão, chão. De tão bizarro até rima. Desinfetar, não respirar, álcool-creme, álcool-creme, álcool-creme. O-dia-inteiro. Enquadramento. A vida fora hoje é quadro. Dois, vários. Uns sem rosto. Outros com contorno de saudade. Virtualmente uns sem virtude. Visualmente, outros sem definição. Pixels, imagem congelada, a linguagem a perigo. Um novo ritmo intermitente. Pausa. A melhor parte, pra mim, é a auto-performance em risco. Selfie fora de moda. Agora é mesa de café, samambaia e o céu visto da janela. As lentes no contracampo. Sem drinques, sem “night”, não à balada, não há balada. Performance de pijama, desafinada, show sem palco e público. A música trava, a voz não alcança, nós todes enquadrades no mesmo limite espacial. Uns nas valas, outros em quadro. Eu travo, Marina trava, Antônio trava, João, Maria e José. Xuxa trava, Porchat trava, até Obama deve travar. Ao menos algo em comum. O que custava caro, agora é de graça nas lives. Ui, que perigo do Comunismo voltar. Se manquem, por favor. Quem deveria travar não trava. O vácuo de Stranger Things, o mundo de John Carpenter, o ensaio de Saramago, as palavras de Hannah Arendt. E o nosso epitáfio de quarentena. Tentei escrever o meu, se assim Deus me permitir. Um epitáfio de reset, de vida nova, de recomeço. Quando as portas reabrirem, caírem essas novas máscaras, o que restará de nós? Quem restará? BBB da vida afora.
Epitáfio. Queria ter, ME amado mais. E eis: De súbito, em súbito, de pé se pôs. Ergueu-se em meio ao clamor deitado, deixou seguirem as mãos que no caminho escolheram se soltar. Ela escolhe. Ela deseja. Voltou inteira, presente, avante. Para o alto e em luz. De volta, pós-revolta, num espaço preenchido por toda ela.