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  • Foto do escritorUrsula Rösele

Quarentena em devaneio - nove deles

#09

Duro é dar conta do tempo que faz... desde a última vez que você deitou, na grama, no colo, no sofá. Olhando as estrelas, o teto, o universo em seus olhos fechados. E ouvir as tantas músicas que embalam sua memória gerando sonhos outros, vários deles. Este texto é para ser lido ao som de "Ram on", do Paul McCartney. Com ela lembrei tanta coisa. Duro é esquecer dos voos que a música nos voa. Do não-tempo tônica do inferno, que deixou a gente tão doente, tão atoa. Pra nada, lhufas. Foi-se o livre-arbítrio e aí? Valeu de quê aquele tempo todo produzindo, proativa, vestida com a camisa de outrora. Passa, tudo, tudo isso passa. Aí fiz uma playlist pra me ouvir. Porque aquelas tantas melodias me cantam meus passos num tempo que não volta mais. Mas lembro, às vezes com sorrisos tão doces e penso: foi bom também. E começa "Distractions", também do Paul. Voltei à rua Universo, já citada nesta quarentena. No último quarto da casa tinha um escritório. Mamãe ligava nosso Gradiente, não sei se sábado ou domingo. Sábado, acho. Domingo pra ela é o horror clichê. Ali ela ligava o 'long play', ela sempre usou o nome completo dos LPs. "Flowers in the dirt". E cantava pela casa, geralmente vestida com uma camiseta de tecido fino, os cabelos loiros pelo ombro e o Ralph, seu papagaio, cantarolando a melodia no sem-tom de seu bico preto. "Tenho saudades de tudo". Mesmo sem me conhecer Walter Salles pensou em mim quando escreveu esta frase. Pulei umas músicas e fui no hino-mor: "God only knows"...indeed. Sabe-se lá quanto tempo ainda dessa cantilena do só eu. Do vazio da rua. De desinfetar a vida para sub vivê-la. Estava logo ali a Praça, o museu, o asfalto em busca de meus pés. Paro um pouco, penso se esse texto vai para algum lugar, visto que minhas pernas não podem. Agora toca "The only living boy in New York". As músicas chegam até nós de formas tantas... vêm codificadas, também, nos corpos que as cantarolaram, nas estrelas que um dia dividimos, no bate-papo bom e descompromissado, que nos levou até lá. Vão-se os corpos, ficam as canções. Tantas.

Lembro da loja de CDs do quinta Avenida, com o vendedor gente fina cujo nome não recordo agora. Eu e Paulinha, colega/irmã de faculdade, vivíamos lá, empilhando os vários discos que acabávamos levando pra casa para ouvirmos juntas. Bons tempos aqueles. Quantas vezes fomos felizes e não sabíamos? Digo isso ao som de "Island in the Sun"... essa traz sorrisos, um bocado deles. A dancinha besta que inventei, as várias noites e dias em que estivemos na piscina, nos corredores da faculdade, tomando vodca Ascov sem fazer ideia do que havia no porvir. Duro é pensar que sonhamos em vão. Entender onde foi que a rotina nos arrastou dali. Textos de canceriana, com certo fogo do ascendente em áries, deve ser isso. Penso um final bonito enquanto toca "Why does It always rain on me". E penso na chuva, a chuva, a água, seu cheiro. Se posso ainda desejar pra fora do peito, lá vai: no primeiro dia pós covid, peço uma tempestade de chuva grossa pra lavar tudo. E prometo: chove, chove em mim que pra lá eu vou.

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