Ursula Rösele
Quarentena em devaneio - oito deles
#08
"Uma carta de amor… para o amor, em tempos de fim dos tempos" Pensando aqui no tom ideal para uma carta hipotética, a um sentimento cuja concretude se apalpa (ou mesmo não se toca), nas mais diversas coisas e gestos. Pensando se falo para “o” amor, num sentido amplo, seja ele dirigido ao inanimado, à arte, às flores, aos cheiros, às amigas e amigos, ao meu filho, à minha mãe, aos textos, às imagens. Se uso plural, “os” amores, “as amadas”, “aos(às) amados(as)”. Uma carta com data de longe e de hoje, nas distâncias encurtadas pela nova vida online desse sem-tempo, estendidas pelo viver remoto, sem que eu possa me apossar de nada nem de ninguém. Será que com todas as profecias que vêm circundando nossos dias, nossos memes, nosso feed… será se com o olhar que pende ao apocalíptico, ou o olhar que tenta cativar o lado doce e revolucionário desses tempos… será que haverá alguma pausa efetiva e o amor, enfim, será novamente convidado a dançar(mos)? Será se novos tempos, depois do fim desses, trarão consigo algo menos vazio que o balé da superficialidade que vimos dançando esse tempo todo? Será, amor nosso, que poderemos vislumbrar um tempo realmente novo, em que, com a passagem do vírus invisível, com o silêncio de nossas quarentenas, o desafinar dos versos soltos, será que estaremos prontas e prontos a um novo gesto de amar, amor? Se trocaremos os silêncios pela fala, o não olhar pela íris na íris, o desejo pelos orgasmos-mil, esvaziados de sentido nas mil pessoas quaisquer, pelo gozo de uma vida a dois, a três, livres, junto, parceiros(as), ao lado? Será que esqueceremos em breve desse agora, em que o desconhecimento do tempo que falta, nos faz almejar um tempo que vem vindo sabe-se Deus de onde, como ou quando? Em quê apegaremos, amor meu? No vil metal e sua vil e vazia ação no mundo? No furtivo, na velocidade, no gap, no workflow?
Rememoraremos as lives de meditação, as preces, as saudades todas… e faremos do alhures que virá, uma constante compensação pelo tempo que foi? Ou haveremos de largar a memória na sarjeta, ignorando tudo o que invade o nosso pensar… em prol da proatividade, dos planos de carreira, de crescer, subir, galgar? Em nome da grana, do palco, do podium, do seco, do sem gosto; em nome do frio, do balde de água gelada, de desencantar encantados(a)s, porque não saberemos ler nas entrelinhas o que se apresenta aqui e agora? Seja pela fé ou fel… aprenderemos? Amor, você que um dia foi parte de mim. Que vi (me) partir em vários corpos e tempos, que ora me sorriram, ora feriram… e o vi renascer. Em mim, meu corpo, minha voz, minha força e minhas crenças. Que vi sair de meu corpo aos meus braços. Que me canta em assobios finos, nas árvores, no vento, na chuva que tanto gosto. Tenho saudades de ti, amor, amar. Saudades de um amor que ainda não vi ou vivi. Um amor sem medo, sem trono. Um amor que não me relegará à sombra, porque vi, com o tempo e os espinhos, que isso de amor nada teve. Quero, como ele e ela tão bem cantaram… a sorte de um amor tranquilo. O riso frouxo. Falar ao mesmo tempo e achar nisso um vislumbre do divino em nós. Me pergunto como deve ser caminhar ao lado, junto, os olhos atravessados e atravessantes. O neologismo, para dar conta do indizível. Quero amor em tempos de quarentena. Que me recite versos, me cante melodias. Que sinta a minha falta todas às manhãs e possa me encontrar em cada canto que traga sorriso e memória de nós dois. Que me veja nas meias, que adoro calçar. Que me enxergue no vinho, me cheire no hortelã, me dispa, me leia, me acorde em sonhos de voo. Será amor, que lembraremos, ao findar do covid-19, que passou o carnaval e vieram as cinzas diárias, de entes queridos(as), desconhecidos, na mídia. Que o tempo de uns e umas passou, que voltaram aos braços do Pai, no entanto, quem ficaremos aqui? Faremos jus, amor nosso, ao que esperam de nós? Levantaremos pós silêncio, feito fênix, e abraçados(as) lembraremos de tudo para sempre?
Espero, amor, que, amada, possamos encontrar uma saída doce após esse longo túnel r(evolucionário). E paz. E riso. E gozo. E mãos dadas. E o máximo de nós todes. O que viemos aqui fazer. (Ursula Rösele - 06/04/2020)