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  • Foto do escritorUrsula Rösele

Quarentena em devaneio - quatro deles

Quarentena em devaneio – quatro deles

#04

Antônio tem avós feitas (e feito) de açúcar. O tal "mãe educa, avó estraga" me irrita sobremaneira e discordo em absoluto dessa ideia que, pra mim, tem mais de lacuna psicanalítica do que tudo. Mas a doçura, o lugar que esses corpos ocupam na vida das crianças é uma coisa linda demais de se ver. Essa quarentena está me deixando com uma nostalgia peculiar... um passado distante tem retornado e sido presentificado para mim. Uma aventura até interessante, hei de dizer. Vovó Adélia, minha avó materna, tinha uma conexão muito intensa comigo. Lembro que eu tinha (ainda tenho) mania de dizer, do nada, "né?". E ela, em sua pequeneza corpórea, dava um sorriso breve e respondia "é, filha, se você está falando, é". Vivemos muita coisa juntas. Ela vendeu salgados por muitos anos e me sentava na mesa da copa enquanto colocava os salgados congelados nos saquinhos. Eu ia acompanhando cada etapa, rapando a bacia de massa de pão de queijo. Lembro que ela tinha um aparelho meio hightech (pra época) que tirava poeira da casa. Eu, magricela e pequenina, subia naquilo e de repente tinha uma nave espacial. Lembro de entrar em sua casa, brincar com uma pequena estátua, sei lá, indiana, onde se colocava moedas depois de fazer um pedido, passava pelas samambaias e violetas e, ao virar na copa, via vovô, silencioso, sentado em uma cadeira reclinável na sala de TV. Vovô era uma espécie de totem mudo. Eu ia até lá, beijava sua careca, ele sorria, me dava bananinha doce (que escondia em uma caixa debaixo de sua cama) e assim se dava nossa relação. Já com a vovó eu vivi um universo. Íamos juntas ao supermercado, ela fazia um mexido delicioso, e de noite dava boa noite para o Cid Moreira na TV. Vovó era baixinha, miúda, tinha um cheiro delicioso de flor e amava Coca-Cola. Quando adoeceu, eu cuidei muito dela na casa de um casal de tios que a acolheram por muitos anos. Almoçávamos juntas todos os dias, eu lavava suas lentes de contato (eu era uma das únicas pessoas que ela deixava tocar seus olhos), e costumava ficar com ela quando minha tia precisava sair.

Na Alemanha minha relação era ainda mais peculiar. Minha avó (Oma), xará, não falava português e nem eu alemão. Ali o afeto se dava no toque, no sorriso, no lanche da tarde. Ela tinha um pomar com uma árvore de groselha, que, em alemão, chama Johannesbeere (já escrevi sobre isso em meu site). Ela catava as frutas, fazia um bolo de nozes e chocolate e um suco de groselha para me esperar. Os cheiros... eu e a Alemanha é uma história de aromas e silêncios. Saudade do carpete, do cheiro de café, da matrioska no móvel da sala. Oma era rosadinha, bochechas carnudas e, apesar de sua dureza germânica, me olhava com a típica ternura de vó. Saudades dos seus abraços, de como ela falava "Ah, mein Ucha" (ah, minha Ucha), quando colava seu corpo embebido de talco em mim. Adélia e Ursula faleceram no mesmo ano, 2004. Em outubro, minha Oma se foi, após duas cirurgias meio estranhas e um possível erro médico que meu pai e tios não quiseram investigar a fundo. De repente. Eu não pude me despedir, pois estava no Brasil. Enviei uma carta, que meu pai imprimiu e colocou entre suas mãos no caixão. Sobre nossa despedida simbólica, contei em outro texto, vou indicá-lo depois. Vovó Adélia se foi com 92, 94 anos, não sei ao certo. Já estava com a saúde bem deteriorada. Ela era apaixonada pelo meu pai. Após a passagem da minha avó alemã, eu pedi a ele que viesse à minha formatura, que seria em dezembro daquele ano. Após 13 anos longe do Brasil, meu pai topou vir. Chegou em BH dia 09/12/04. Nesse dia perdi um pai emprestado, de minhas amigas, Lud e Tatiana (não sei se a data está exata, se foi uns dias depois - ano tenebroso de despedidas esse). Dia 10/12 eu, mamãe e papai fomos visitar a minha avó. Nesse momento ela ficava mais calada que tudo, sentada na cadeira de balanço de madeira da casa da tia Maria do Carmo. Papai se aproximou, deu um beijo em sua testa e disse "como vai, mãe?" (era como ele a chamava). Ela sorriu, olhou para ele calmamente e disse: "você chegou tarde, meu filho". Naquela madrugada, vovó levantou para ir ao banheiro e caiu. Não se sabe se caiu pelo enfarto, ou se teve o enfarto pela queda - seu coração já estava bem fraquinho.

Ali ela partiu, como um passarinho, para encontrar a minha Oma do outro lado. 2004 foi um ano bem maluco... tenho uma coleção deles. Que saia um livro disso, ao menos. Bem... em tempos de quarentena são inúmeros os desafios e os abismos sociais que separam todes nós. Estou a maior parte do tempo sozinha com Antônio em casa, fazendo todas as tarefas, tentando animá-lo e cuidando das diversas atribuições das salas de aula transpostas para uma plataforma online. Tenho escrito em pequenos arroubos de inspiração, ora quando Antônio dorme, ora quando vê desenho, ora quando fica online com as avós. E é sobre isso que quero falar. Para nós, adultos(as), o isolamento tem inúmeras implicações. Os prognósticos são assustadores, vislumbramos um futuro de incertezas econômicas, trabalhistas, políticas e por aí vai. A lista é infinita. As máscaras no rosto não cobrem as da alma, que caem, indeléveis, diante de nós. Para mim, ao menos, tem sido tempo de expurgo. De muita coisa que deixou de servir. Em diversas esferas. Mas Antônio, meu pequeno gigante, tem me ensinado sobre a sutileza poética do cotidiano infantil. Anteontem, para que eu pudesse participar de uma reunião do trabalho, sua avó paterna ofereceu para conversar com ele por vídeo do whatsapp. E aí, querides, abriu-se um lindo portal. Vovó Lúcia, Vovô Tadeu e Antônio mergulharam no lindo universo de um desenho que ele adora, PJ Masks. Vovó é Corujita, Vovô, o Lagartixo, e Antônio o Menino Gato. A narrativa ficcional foi transposta a um mundinho em que vovô Lagartixo apronta mil confusões, enquanto vovó e Antônio tentam dar conta de suas peripécias. Ontem eu brinquei, dizendo que vovô Tadeu combina mais com Romeu (o vilão do desenho), porque ele só apronta. Antônio então, do alto de sua sabedoria, me disse: "sim mamãe, mas sabe, eu e vovó queremos ajudá-lo a ser um herói". Neste momento, enquanto escrevo, Antônio brinca online com a minha mãe. Ele e vovó Helena adoram fazer viagens interplanetárias. Antônio pegou o celular e entrou debaixo do edredom. Juntos, foram à Austrália viajar a tia Julie, enfrentaram alienígenas. Agora ele e vovó Helena reformam uma pipa que construíram juntos antes da quarentena.

Reformam um navio, constroem aviões. Com os(as) três Antônio jogou aviões. Com vovó Lúcia plantou feijões. E as distâncias têm sido abolidas, através de seu doce olhar infantil e da disponibilidade infinita desses corações de avós e avô. Só me resta expressar minha gratidão às vovós e ao vovô de açúcar. Por mostrarem pra nós que o amor não tem mesmo barreiras. Por embarcarem em "mil aventuras" (como diz Antônio), esquecendo a crueza de um mundo concreto que ultimamente tem tido gosto de fel. Como eu disse no texto de ontem, acho que precisamos olhar para o tempo, profundamente. Para sua espessura elástica, para sua dimensão abstrata, para sua imensidão. Que fiquem esses gestos. Que a memória desses tempos não nos falhe. Jamais. Ursula Rösele (25/03/2020)

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