Ursula Rösele
Quarentena em devaneio – vinte deles
#20
Antônio vai embora nas quintas às 17:30.
O coração aperta. Deixo de pertencer às suas narrativas, mesmo que ele não saia de mim um segundo sequer.
Passei raspando, pertinho de ceder.
Deitada, olhando a pequena fresta de luz que entrava lá de fora. Quadrados da minha janela ressignificados em sua forma pelo reflexo na parede.
Um tanto de coisas passando aqui e acolá, eu e meus autoboicotes, a vida e sua estagnação impertinente.
Levantei.
Vou fazer um risoto – sincero desejo pequeno burguês.
Vinho do Alentejo, vício recente. Aquele som delicioso quando o líquido toma a taça pela primeira vez.
Cebola, alho, refogados no azeite curtido no alecrim. Põe o arroz, mistura. Não tinha vinho branco, pus saquê. Piquei uns queijos quase perdendo, gorgonzola, nozes. Peguei lascas de amêndoas. Fui ouvindo uma entrevista qualquer no celular. Vida outra, narrativa alhures.
Tudo longe, longe, longe de mim.
Eu ali no barco do acolá.
Ficou pronto.
Das tolices que aprendemos em nossos privilégios de quarentena: passei a abrir vinhos que guardava para compartilhar, louças idem. Toda uma mise en place das performances de um mundo que por ora não cabe mais aqui.
Montei a mesa, peguei algumas folhinhas de manjericão e gentilmente afundei no prato cremoso. A foto, o registro, a vida fraturada para o mundo outro, o paralelismo dos ‘mins’ que vão habitar a vida consumável das telas.
A primeira garfada – falta algo. Peguei o limão siciliano, aberto na geladeira e pinguei como chuva no corpo branco do arroz.
Natalia Lafourcade, minha deusa de quarentena. Coloquem aí, “Cuando sale la Luna (Deja que salga la Luna)”, gravação sua com Leonel García.
Mastigo devagar, deixo os sabores penetrarem a língua enquanto me sonho no México. O avião pousando, o idioma, as ranhuras do espanhol que aprendi argentino, diferente desse em que o “v” é tão perfeitamente pronunciado.
Não quero voltar.
Há toda uma vida de pequenas dores e memórias que devo apagar.
Deixar o novo me nascer no peito inteiro.
As flores, vermelho-amareladas, jazem em meu novo vaso, na mesa posta, contrastando com a mente, que flana para longe dali.
O quebra-cabeças por fazer.
Papais Noéis apressando o tempo que, ainda que cruel, voa célere sobre nós todos.
Me apego a pequenas coisas, a objetos, crio sentidos nos espaços silenciosos do novo lar.
Penduro um quadro, penso em comprar uma furadeira.
Olho em volta, tudo aqui parece comigo.
Sonho em partir, mais uma vez.
E outra, e outra.
Até que as coisas, os versos e as malas, vão ficando para trás.
As fotos, roupas que não uso há tanto tempo.
A alface, que envelhece na geladeira.
Meus sapatos empilhados aguardando o meu pisar.
E o vento que agora entra sutil pelas beiradas, da chuva que não voltou.
Quarentena, dia 12.937.
Ursula Rösele | 12/11/2020