Ursula Rösele
Quarentena em devaneio – vinte e um deles
#21
Os pés dentro d´água
A cabeça debaixo dela
As mãos ondulam um balé por entre os dedos
Molhados
Deixa o jorro de vida transpassar seu corpo todo
Permitindo sentir, com o escorrer em si, cada curva
Observando os impeditivos de gotejar que seu corpo provoca
O dorso
Os seios
O abdômen
Seu sexo
As coxas
Os joelhos
Os cabelos
O pescoço
A coluna
A cintura
As nádegas
E, por fim
Os dedos dos pés, que tentam manter aquela força da natureza em contato com tudo o que de si pulsa vida
Move, dedo a dedo, essa água que cai
Pisa, sente o chão entre si e a maré que vem de cima
Fecha os olhos e sente que é um pouco rio, um tanto mar
Chove
Forte, muito
Busca, nas reentrâncias de sua casa, frestas por onde a água tentará encontrá-la
Toda água a busca
Toda ela a água
Ela busca o todo
A água toda
Eu
Pisa na poça equivocada do meio da sala
Quase escorrega no liso do chão
Sai água dali também
De seus olhos
De sua memória
Dentro
Fora
Uma força só
Pensa ser um eu cachoeira
Que rola por entre as pedras
Evoca os raios
Balança os cabelos
A água escorre também dos fios
Cada pedaço de si é líquido
Toda sua alma maré
Compreende o que é verter água
Entende as forças externas
Confunde onde está
Imagina o caminho da chuva em uma grande árvore
Pensa no corpo da árvore e no seu, que também é seiva, tronco, superfície pela qual a água desliza, fica, demora, esvai
“A árvore também sou eu” – diz baixinho
Eu sou o sopro
A língua
O mantra
O verso
A deixa
Segura uma mão na outra em prece
Respira, lenta e profundamente
Despede e nada para longe dali
Sua alma peixe
A marear outros caminhos
Ursula Rösele | 16/11/2020