Ursula Rösele
Se para
Há um tempo venho pensando em elaborar alguma coisa acerca de meu divórcio. Não sei se há propriamente algo a ser elaborado, porque se trata de uma espécie de work-in-progress com algumas reviravoltas e a impossibilidade do mapeamento.
Fui casada por seis anos. Mais seis de namoro. Doze anos de meus quase trinta e nove.
Quase 1/3 da minha vida elaborando um constructo social que nos conduzia à utopia do para sempre.
Não há um dia em que a coisa acaba, aquela coisa de quem verbaliza a necessidade do fim. O dia são dias e a voz de um, em geral, reverbera uma percepção do dois.
Separar é apertar um botão de pare num tempo hipotético cujo fim não poderia existir.
Não se casa – acho – vislumbrando o fim, mas o futuro.
Nos últimos – quase – um ano e meio, venho dizendo às próximas e próximos que o que mais me doeu nessa experiência foi ver uma ideia ruir.
Separar é reconfigurar o tempo.
É reiniciar, sendo que do ponto de partida pouco sabemos.
É tentar entender o que nos tornamos pra saber o que fica e o que vai.
Nossa despedida foi doída, longa, levamos um bom tempo pra bater o martelo.
E os funcionários da empresa de mudança abriam e fechavam caixas naquela manhã de segunda-feira. O barulho da fita adesiva, as perguntas do que vai e do que fica.
Entramos no banheiro. Eu perdi a força das pernas. Ele disse “teve bom”. Um beijo na testa.
E ali minha vida parou. O tempo, o espaço, o que eu diria, como seria o amanhã, as datas comemorativas, os novos pares. Tudo parou.
Separa.
Para.
Para tudo.
Se.
A gente acredita na ilusão do dois.
No amor eterno.
O arroz nos cabelos, a noite de núpcias.
A marca da aliança no dedo, que custou a sair. Passar a mão no lugar em que ela ficava, a sensação de que esqueci algo.
Esquecer.
Isso não existe.
Foram poucos os dias em que não nos falamos desde então. Afinal, temos um filho.
Certo alívio por termos o pequeno, porque, né, como não nos falarmos depois daquela história toda, os dez anos trabalhando juntos, os sonhos, conhecer o outro pelo olhar.
Eu tinha apenas vinte e cinco anos. Na despedida, trinta e sete.
Naquele dia eu fui para um hotel com o Antônio. O pequeno dormiu, eu passei a madrugada olhando a parede branca.
A tela branca, esperando para ser reescrita, repintada, re.
Se.
Separa uma parte que sou eu. Sou?
Para.
Eu paro.
Disparo, perdida, sem rumo.
E começa, re-começa.
As piadas, groselhas, rir de madrugada, mesmo nos piores momentos.
Tudo se foi naquela segunda-feira.
E se iniciou uma nova jornada.
No mim, no eu, não nós, mas singular.
A busca por uma inteireza 2.0.
Bipartida, quebrada. Recolhi os pedaços e formei um mosaico de um novo eu.
Das novas partes fui sabendo com o tempo, coletando uma nova memória, redescobrindo e criando.
Parte.
Parti.
Para.
Se parei.
Os olhares, o entorno. “Achei que vocês jamais separariam”.
Levei um tempo considerável para me encontrar.
Nem re. Eu não havia me achado até então.
E aos poucos me descobrindo.
Em-cobrir.
Uma madrugada, ligamento rompido, sinusite nos olhos, rosto inchado.
Encarar o espelho, sozinha. Eu e ele. Meu corpo desconjuntado e eu.
Há o antes e o depois daquele dia horroroso.
Me achar.
Ra-char.
Se para, eu paro, sem retorno possível.
Paro e olho, em-caro.
Fui me vendo partida, separada, perdida.
E achando aos poucos eu fui.
Redescobrindo um mim, o eu, a inteireza de uma nova parte que formava a completude.
E assim caminhei e venho caminhando.
Com dores que ainda carrego, com mágoas que deixei Iemanjá lavar.
Segurando firme nas mãos de Oxóssi, pedindo colo a Oxalá.
Fui, segui.
Se pá, rolou.
Se pá, re-paro.
Vou, volto. Olho um caminho ainda turvo.
De afetos multifacetados, de um entorno que foge, corre, escapole.
Jamais serei dois novamente.
Porque me tornei uma, imensa, erguida.
Se vier, será ao lado, no caminho, atravessando junto.
Porque agora sou eu, Ursula, maiúscula, fêmea, forte, nome próprio, meu sobrenome.
Teve bom e carrego isso comigo. Para sempre.
Mas será ainda melhor.
Um sorriso leve no rosto, olho para trás, um meneio de cabeça, e sigo.
Sem arrependimentos.