Ursula Rösele
Vida de mãe
Teve um dia semana passada em que eu percebi o nível de insanidade da minha rotina de mãe/profissional.
Bota reparo:
Segunda-feira
Despertador toca – 7 da matina. Antônio ainda dorme, ao meu lado, pediu de madrugada pra ficar comigo. Ele costuma ter uns sonhos ruins (na medida do ruim para uma criança de três anos. Certa noite ele me chamou, chorando “mamãe, mamãe”. Cheguei lá e ele ainda dormia. E disse: “para de jogar sorvete em mim, mamãe”).
Levanto, tomo banho, deixo o café do pequeno pré-pronto, não dá tempo para o meu.
Chamo o rapaz, ele retorce, p. da vida. Temos tratamento com a t.o.
Antônio se recusa a comer, invento uma história, canto, ele come um pouco, saímos.
Porta aberta, lembro que não coloquei a água na bolsa, ele pode pedir.
Volto.
“Quer fazer xixi, filho?”. “Não”.
O carro da vizinha que fecha minha passagem está lá. Ponho Antônio na cadeirinha, fecho, deixo a bolsa, empurro o carro. Entro, ligo o meu, dou ré, deixo embicado pra sair, desligo o carro, desço, empurro o da vizinha de volta pra vaga dela.
Levo um livro pra t.o., mas não consigo concentrar, presto atenção no papo alheio, respondo mensagens no whatsapp, lembro das coisas que ainda tenho de fazer na semana.
Antônio sai, temos ainda uma hora para a consulta com a pediatra. Vamos aproveitar e passar na faculdade. Ponho o carro no estacionamento, pego Antônio, cantamos na rampa, atravessamos a rua, xeroco o texto para uma das minhas aulas. Antônio pede uma caneta, faz mil perguntas, a moça leva 100 anos para xerocar o texto. Saímos, atravessamos a rua, passamos no meu trabalho. Deixo o texto, mando mensagem para uma aluna avisar aos colegas. Pego o carro no estacionamento, faltam 20 minutos.
Chegamos lá, a secretária avisa que ela estava atrasada. A consulta de Antônio estava marcada para 10:30 da manhã. Brincamos, leio livros com ele, montamos pecinhas disponíveis para os clientes, desenhamos, rimos, eu começo a bocejar. Chega uma moça com uma recém-nascida, conversamos sobre filhos, parto, puerpério.
Antônio é chamado somente às 12:45. Em trinta minutos deveríamos sair para a escola e ele ainda tinha a consulta, banho e almoço pendentes. Percebo que não vai dar para levá-lo, pois para chegar à escola são mais de vinte minutos dirigindo e bem... consulta, banho and almoço. Repenso meu dia, não vou conseguir resolver as pendências do trabalho e da casa, porque terei de ficar com ele.
Tudo bem na consulta, apesar do atraso, amo a pediatra.
Chegamos em casa, banho, almoço.
Convenço Antônio a vermos desenho (e aí as autopunições por não estar desenvolvendo o lado Montessori-waldorf-disciplina positiva-maternidade ativa). Coloco a tábua de passar ao lado do sofá e passo roupas enquanto ele assiste Tom e Jerry.
Arrumo a cozinha, preparo o jantar, ponho as roupas na máquina.
O dia vai passando.
“Antônio, você precisa de frutas. Quer?”. “Não”.
Culpa.
De noite, jantar, “filho, vamos dormir, mamãe trabalha amanhã cedo”.
Deitamos na cama, contamos histórias. Três porquinhas (porque não sou obrigada), Rapunzel. “Mamãe, me fala o que o pessoal do vovô dos Alpes gosta pela letra?”. “O pessoal lá gosta de comidas com a letra P”. “Banana”. “Banana não é com P, filho”. Antônio ri. “Lá é um país frio, têm bananas, mas elas são meio ruins. Você sabe o que é país tropical?”. “Não”. Explico, de um jeito que acho que ele vai entender.
Em tempo: vovô dos Alpes é o meu pai. Já falecido. Era alemão. Diariamente conto para o Antônio os costumes dos alemães, afinal, ele precisa pertencer lá também, temos família na Alemanha. Antônio já canta parabéns em alemão. Meu pai iria gostar. O chamaria de moleque, com certeza. Ele chamava todas as crianças assim.
23:30. Antônio pula na cama. Volto com ele para o sofá. “Filho, dorme. A mamãe ainda precisa passar roupa”. “Não vou dormir nunca mais, mamãe. Não gosto de dormir”. Peppa pig. Não suporto esse desenho.
Culpa.
Antônio dorme, carrego pra cama, volto para a sala.
Abro o youtube, assisto a uma entrevista do Boulos, uma palestra da Maria Rita Kehl sobre feminismo – para a minha aula da semana que vem.
Passo roupa até 1:30 da manhã.
Deito na cama, exausta. Insônia.
Acendo um incenso, ponho uma meditação guiada no celular, faço umas preces.
Durmo.
Terça-feira
Toca o despertador, 07:00.
Daqui a pouco chega a faxineira nova.
Levanto, sono danado, checo se está tudo bem com Antônio no quarto dele. Tomo banho.
Toca o interfone, 07:30.
Tento mostrar a casa para a moça, explicar mais ou menos onde ficam as coisas, conversamos um pouco sobre a vida.
A babá chega às 9:00.
09:10 chega a avó paterna.
Percebo que chamei as duas sem nenhuma necessidade.
Penso, “minha cabeça está uma loucura”. Me puno. Não posso falar essas coisas, atrai. Tento esvaziar o pensamento, meditação, leveza, axé.
Lembro que Antônio está cheio de roupas que não cabem, o armário bagunçado, brinquedos para doar. Peço a babá pra fazer isso por mim.
Culpa.
Eu deveria ter feito isso com ele, perdi uma ótima oportunidade de ensiná-lo a zelar pelas suas coisas.
Antônio se nega a tomar café comigo, quer a avó.
Deixo tudo pronto.
Já saindo pela porta, lembro dos remédios dele.
Volto.
“Cacá, vem cá”. Cacofonia.
“Esse aqui são 10 gotinhas diluídas na água, o antibiótico termina hoje, 3ml, lava o nariz dele, tá? Ah. Frutas, tenta fazer ele comer frutas”.
Saio no corredor, volto.
“Cacá, foi mal, vem cá de novo? Tem arroz, carne moída, feijão, purê e tomatinhos. Almoça também. Filho, mamãe te ama. Fiquem com Deus”.
Consigo, finalmente, trancar a porta do apartamento.
Peço um uber, vou para o Palácio das Artes. Está acontecendo o festival Lumiar, cinema universitário. Fui uma das criadoras, mas este ano não consegui trabalhar no festival, porque, enfim. A vida anda me engolindo.
Assisto aos filmes, dou uma olhada para ver quais alunes foram. Poucos da minha turma. Fico me perguntando pela milésima vez por qual razão essa juventude não curte tanto cinema, o deles, que vai ajudar com um processo criativo pessoal. Penso, para de fritar, mulher, deixa quieto. Os filmes terminam.
Resolvo subir a pé para casa, mando áudios, marco a dedetização, lembro do cheque, deposito o dinheiro na conta certa.
Chego em casa, Antônio está almoçando. Dou uma checada no instagram, respondo umas mensagens.
13:10. Saio com Antônio para a escola, o carro que tampa a minha vaga está lá. Xingo mentalmente, Antônio não pode ouvir palavrão. Ele sobe na cadeirinha, pensamos se as águas estão ligadas (ele ama as fontes da praça perto de nossa casa). Empurro o carro, sento no meu, dou ré, paro empinada na rampa da garagem, desligo o carro, saio, empurro o outro de volta, entro no meu, ligo, saímos da garagem. Vamos cantando “será que as águas estão ligaaaadas”.
Desço a avenida, um carro dá seta, entra em frente ao meu. Placa: 0333. Subo a outra avenida, ligo o rádio, canto um pouco, Antônio faz perguntas. Desligo o rádio, conversamos.
Chegamos na escola, pego a mochila, vou com ele até lá, ele faz cara de choro, eu já dou aquela olhada para a menina da portaria, peço ajuda. Dou um beijo, falo que amo, vejo ele descendo a rampa. Ele olha para cima, levanta as mãozinhas em minha direção, a moça da escola fala com ele. Viro as costas e saio.
Culpa.
Entro no carro, ligo o rádio. O melhor momento do meu dia. Quero cantar. Só toca música merda. Ponho nas notícias, quero a ignorância, Jesus. #elenão
No caminho, outro carro. Placa: 9099.
Chego em casa, sento no sofá. Olho a programação do festival. Tenho que ir lá assinar o ponto na faculdade. Preguiça de me mover. Nossa, tenho que correr. Faço as contas, será que vou amanhã? Enrolo. Nossa, tenho que fazer a unha, lançar as notas das minhas turmas, responder e-mails, emagrecer 10kg, que vontade de tomar uma taça de vinho.
Saio de casa, desço a pé para o banco. Ouço áudios, respondo alguns. Chego ao banco, senha G672, faltam duas pessoas. Uma moça chega, vejo a senha dela. U745. Ela é chamada. Uma senhora olha meio nervosa, levanta, vai lá e checa quantos caixas atendem. Vejo a senha dela. G671, penso se ela tem menos de 65 anos, por que não pegou preferencial. Na TV do banco passa uma receita de bolo, a cotação do dólar, dicas para o seu cão.
Sou chamada, faço um depósito, pago uma conta. Saio do banco, lembro que preciso transferir o dinheiro dos orgânicos.
Antônio precisa comer frutas. Agrotóxico faz mal.
Passo na farmácia, entro, esqueço o que eu precisava comprar.
Volto para casa, pego a tábua, começo a passar roupa, ligo o youtube, penso o jantar, confirmo com a babá o horário que ela vem, converso um pouco com a faxineira.
Respondo umas mensagens.
Volto para o youtube, feminicídio, quem tem medo do feminismo negro, nooossa, esqueci de passar para o Ed os dados da minha aula, a que eu o convidei. Mando um áudio, ele responde rápido, super solícito.
Passo mais roupas, tiro as de ontem do varal, molho as plantas.
Despeço da faxineira, combinamos outro dia, semana que vem talvez.
Deu a hora de buscar Antônio, vou atrapalhar a historinha que a professora conta, tenho que levá-lo mais cedo por causa do meu trabalho.
No caminho, outro carro: 0111.
Chego lá, peço pra trazerem o pequeno.
Ele aparece, sorri, quer subir pela rampa. Vem cantando, fala nossas maluquices, chega na última parte da rampa e estende a mãozinha para tocar a minha. Tocamos.
João, o rapaz da portaria: “é de lei ele fazer isso, né?”. “É”. Sorrio.
Antônio vem correndo e me abraça.
O amor incondicional.
“Filho, bebe água no bebedouro, esqueci de trazer. Bebe pouco, essa daí é gelada, você acabou de melhorar da gripe. Quer fazer xixi?”.
Descemos a avenida, trânsito horroroso, pergunto do dia dele, ele não me conta.
Mapeamos a semana, “que dia vou pra casa do papai? Quem vai ficar comigo hoje?”
Digo, “a Cacá, meu filho”.
“Não quero ficar com a Cacá, não gosto mais da Cacá, quero ficar com você”.
“Ô amor, a gente adora a Cacá, a mamãe precisa trabalhar”.
“Pra onde você vai, mamãe, para o Lumiar?”
“Sim, filhinho”
“Eu vou fechar o Lumiar”
Disfarço o riso, pergunto “como assim? Como é fechar?”
“Vou por uma porta e fechar com fita crepe”
Quero parar o carro, esmagá-lo, enfiar de volta na barriga.
“Filhote, não tem jeito, a mamãe precisa ir”
“Vou fechar a UNA* também” *meu trabalho
Culpa misturada com riso.
Deixo Antônio em casa, aquela coisa toda, como será o jantar, remédios, lava o nariz, come
fruta.
Chamo o uber, vou pro festival.
Sala cheia, que bom ver isso.
Chego em casa, Antônio no sofá me esperando. São quase 23:00.
Histórias, acalento, “beijecas” no pequeno. Olho as horas: 11:11.
Ele dorme, durmo também.
Quarta-feira
Acordo um pouco mais tarde. Vou na cozinha, deixo o café pré-pronto, Antônio acorda.
Faço suco verde, ele toma tudo, aleluia.
“Quando você faz essas coisas, eu gosto, mamãe”
Culpa.
Sinto sono, penso “credo, eu sinto sono 24 horas por dia”
Preciso fazer a unha, faço as contas, não vai dar tempo, marco depois.
Lavo as roupas que restam, arrumo a cozinha, combino com o pai do Antônio, hoje os avós vão levar na escola, sexta ele vai dormir lá, combino tudo com a babá, confundo os horários todos.
Jantar, será que tem?
Preciso esvaziar o congelador, até hoje não coloquei o paninho que comprei pra geladeira ficar bonitinha.
Molho as plantas. Minha arruda secou inteira. Eita, lelê.
Almoço, “vamos lá, meu filho, vem comer”. Dou o almoço, rimos, brincamos.
A avó chega, dou beijos, vai com Deus, mamãe te ama.
Volto, quero dormir até amanhã.
Respondo uns e-mails, abro os planos de ensino, sexta dou aula, checo tudo. Lembro que não assinei o ponto lá na faculdade. Saio de casa, vou lá e assino.
Graças a Deus moro perto do trabalho.
Volto para casa, tenho que energizar as minhas pedras, que saudade do atendimento espiritual, será que eles voltaram? Mando mensagem, ainda não, estão fazendo um ritual em homenagem à mãe de santo que faleceu.
Entro no instagram, penso em estratégias para promover o site, não adianta muito, não sei direito como fazer.
Respondo uns áudios, ligo o computador, mando e-mail para as turmas, “a aula hoje e amanhã é no Lumiar, galera”.
Uma amiga manda mensagem, “nosso café está de pé?”.
Eu tinha esquecido, obviamente.
Desço a rua, encontramos. Tomamos um café, falamos de nossos filhos, vida, trabalho, “que saudade que eu estava de você”.
Ela me dá carona, desço pra garagem, o carro tapando a minha vaga. Empurra, liga, desliga, empurra. Saio para buscar Antônio, rádio ligado, música alta, momento alto do dia.
No caminho, as placas: 3303, 0222.
Peço para buscarem o pequeno, ele vem, sorri, a rampa, a mãozinha estendida, o amor incondicional.
Entramos no carro, “como foi seu dia, filho?”. Tento arrancar informações.
Será que os coleguinhas dele também não contam direito como foi o dia?
Descemos, será que as águas estão ligadas? Conto como estavam quando eu passei para buscá-lo, falamos dos próximos dias, ele pergunta quem vai ficar com ele hoje, explico, não há muito protesto porque tenho que trabalhar.
Deixo ele em casa, jantar, remédios, aviso tudo para a babá, pergunto se ela importa de eu chegar um pouco mais tarde, o pessoal do festival tá me chamando pra jantar, estou afastada, enfim, hoje tenho de ir.
Vou para lá, assisto à sessão e ao debate, aquela checagem se a turma foi.
Termina o debate, muito bom, penso umas coisas, tenho umas ideias de ações, nossa senhora, tá osso trabalhar com arte e educação hoje em dia, admiração pela atriz de teatro e cinema que diz que nossa forma de resistir é criando juntes. Tenho ideias, dá um sopro de alívio.
Vamos para o restaurante, eu com estômago vazio, cerveja, queimamos a largada, o restaurante esquece o meu pedido, janto por último, pago caro com a ressaca do dia seguinte.
Chego em casa, libero a babá, Antônio dorme, insônia. Ele vai de madrugada para a minha cama. Três da manhã, eu com enjoo.
Levanto, tomo um engov.
Dormimos.
Quinta-feira
Toca o despertador, café da manhã, remédios do Antônio, babá.
Saio para o Lumiar, a sessão é reprise da noite anterior.
Entro na sala, dou uma olhada em quem veio, fico lá fora.
Encontro um conhecido, conversamos de maneira fervorosa sobre a situação do país.
Nos despedimos.
Chega um amigo que trabalha lá no cinema, conversamos sobre a sala, o governo, as crises de financiamento, o que vai ser de nós, resistência e tal.
Acaba a sessão.
Cumprimento os gatos pingados de minha turma que foram, saio, converso com um colega de trabalho/amigo. Subimos a pé, resolvemos almoçar. Conversamos, pensamos as conjunturas, rimos um pouco, aviso a babá que vou almoçar e chego já, já. “Almoça também, tá?”.
Entro no trabalho, assino o ponto do dia, vou pra casa, pego Antônio, será que as águas estão ligadas, mochila, uniforme, “você escovou os dentes?”. Saímos.
Brinco com a babá, “até já, né? Esta semana tamujunta”, ela ri. Rimos.
Lembro que Antônio não vai dormir com o pai, trocamos pela sexta. Mando mensagem para a empresa de dedetização, vou precisar cancelar, meu filho dorme aqui hoje, eu havia esquecido.
Vamos para a garagem, o carro tapando a minha vaga, Antônio na cadeirinha, ligo o carro, rampa, desligo, desço, empurro o outro carro, retorno, ligo, vamos.
“Quem vai me buscar hoje, mamãe?”. “Eu, amor”. “Você vai atrapalhar a historinha?”. “Vou, filho”.
Subimos, conversamos, cantamos, rimos. Antônio é vida na minha vida.
“Quem vai ficar comigo hoje, mamãe? A Cacá?”. “Sim”. Silêncio.
Chegamos na escola, despeço, ele desce.
Meu momento do dia.
Sigo para a análise, paro o carro, divã e bora lá.
Saio, volto para casa, garagem, empurra carro, abre porta, arruma a cozinha, arruma o jantar, dá uma varrida na casa, fico horrorizada com o tanto de poeira que junta todos os dias, sinto sono.
Deu a hora de buscar Antônio.
Rádio, trânsito.
João avisa que a mãe do Antônio chegou para buscá-lo.
Sorriso, rampa, mãozinhas estendidas, abraço delicioso, amor incondicional, bebedouro, xixi.
Descemos.
Chego, garagem, empurro o carro, converso com a babá, remédios, janta, passo um batom, hoje tem festa. Minha mãe chega também, vai dormir aqui.
Saio, sessão de encerramento, festival foi um sucesso, alegria.
Vamos para a festa, caraoquê, não curto, mas alunes felizes, tá bom. Me assento com colegas e amigos de trabalho, tudo certo. Rimos, comemos. Uma linguiça vegana que parece demais a verdadeira. Penso nas razões para veganos tentarem emular aquilo que eles rechaçam. Comento com amigas. Rimos. O sanduíche estava delicioso.
Vou com duas amigas para o bar ao lado, fugir um pouco dos olhares de alunes, chopp, rimos, conversamos.
Chego bem tarde em casa.
Antônio e minha mãe dormem no sofá, ela ficou com medo dele precisar e ela não ouvir.
Culpa.
Ponho o pequeno na cama, dou um beijo nela e agradeço.
Durmo e já toca o despertador.
Sexta-feira
Toca o interfone, vou atender sem entender o que está acontecendo.
A avó paterna.
Esqueci que Antônio tinha t.o., não o acordei, atendo a porta descabelada, não lembro nem meu nome, acordo o pequeno, ele, sem abrir os olhos, me diz: “vou dormir mais”. Insisto, peço desculpas a ela pelo deslize. Ela consegue acordá-lo.
Arrumo a mochila da escola, ele se nega a tomar café, ponho a comida numa sacola, coloco o iogurte, lembro que ele vai dormir no pai, deixo os remédios com ela, beijo, amasso, falo que amo, eles saem.
“Te amo filho, até domingo”.
Eles saem pela porta, fico um pouco triste, saudade imediata. Já foi pior, aos poucos vou aprendendo com nossa nova configuração familiar.
Minha mãe acorda, não despediu do pequeno, faz uma carinha triste.
Fico feliz de ele ter as duas avós.
Graças a Deus há mulheres em minha rede de apoio.
Tomo banho, café e vou.
Apesar do cansaço, oriento cinco filmes de alunes, conversamos, fico lá além do horário.
Minha amiga que mora em SP manda mensagem “tô na porta”.
Encontramos, abraços, saudade.
Almoçamos, conversamos, “vamos tomar um café?”
Daqui a pouco vou fazer unha. Ela vai embora, dá tempo de depilar.
Depilação, unha, me sinto levemente culpada por cuidar de mim.
Respondo mensagens, volto para casa, termino de preparar a aula da noite.
Sigo para o trabalho.
Compro uma Coca zero, cumprimento colegas, assino o ponto, pego a chave da sala.
Faço uma brincadeira com a turma, um terço veio, o restante tinha ido à festa do dia anterior.
A aula foi bem bacana, apesar do cansaço. Judd Apatow, comédia americana contemporânea, as agruras dos 40 anos, a trajetória highschool, adolescência tardia, vida adulta melancólica rebatida com humor nos trabalhos que ele dirigiu e produziu.
Saio de lá, tinha aquele show, ingressos já comprados.
Sono descomunal.
Pego o uber, encontro uma amiga, entramos.
Conversamos, show, banda delícia, adoro cumbia, queria fazer aula de dança. Fazemos mil piadas com o sono absurdo que sentimos. Tomo um energético. Ela comprou para mim. Escolha bem suas amigas. As minhas são amor puro. Agradeço ao universo.
Olho em volta, observo as pessoas, tenho ideias para textos.
O segundo show custa a começar.
Reclamamos, cogitamos ir embora.
Começa o show.
Bem irregular, brinco com ela, “show de excel”. A banda parece ter colocado em uma planilha todos os elementos cool para a juventude contemporânea. Música atonal com maracatu, percussão, rock e axé. Balança a mãozinha, vocalista com o cabelo despenteado, os jovens pulam, as pessoas de nossa faixa etária observam, como nós. Acho estranho, reclamamos, rimos um pouco, as duas exaustas de sono. Começa a música que amo, quero no meu filme, preciso fazer o filme, vou fazer o filme. “Essa música fez o show valer à pena”, diz a minha amiga. Concordo.
Ela vai embora, eu carrego um pouco o celular.
Chego tarde em casa.
Sábado
Acordo podre, mando mensagem para saber do Antônio, um áudio para o pequeno, ele responde com a vozinha mais linda do mundo.
Saudade. Sinto saudade dele até quando ele está no quarto ao lado.
Vou aprender com a nossa nova configuração familiar, repito em silêncio para mim.
Levanto, banho, respondo mensagens.
Um amigo chega de surpresa, passa um café enquanto tomo banho, tomamos café, saímos para encontrar pessoas no mercado.
Encontramos, tomamos uma cerveja e o dia se estende. Podres, todes com sono, falamos de tudo no bar: sexualidade, homossexualidade, política, shows que temos que ir, trabalho, tocam umas músicas estranhas no caraoquê, tomo um gin, crio coragem, canto com duas amigas, observamos as pessoas nas mesas, penso em textos.
Número da música na tela da TV: 222.
Todes com sono, vamos embora, galera.
Chego em casa, como, ligo a televisão e cochilo imediatamente.
Pergunto do Antônio, mando áudio.
Apago no sofá, vou para a cama.
Domingo
Dormi onze horas seguidas.
Oxalá, valeu Deus, aleluia, que milagre.
Tenho que arrumar a casa, hoje vou trabalhar também.
Respondo umas mensagens, checo o site, releio a poesia de ontem.
Saio para tomar café, minha rua cheia de carros, pessoas com a camisa da seleção e bandeiras.
Arrepio.
Saudades, 7x1.
Levo o computador e começo a escrever este texto.
Tomo um suco detox, porque né?
Mando uns áudios, ouço outros.
Escrevo a minha semana.
Agora faltam 3 minutos para às 14:00
Mando mensagem para o pai de Antônio, “vou atrasar uns minutinhos”
Penso numa frase de efeito para terminar este texto.
Lembro de todos os números, da quantidade de vezes em que vejo 000, 111, 222, em todos os lugares por onde passo. Cabalísticos, né. Vou reler os significados.
Minha mãe manda mensagem, “quer que eu vá de táxi?”. “Não, vou te buscar”.
Percebo que minha semana durou 11 páginas de word.
Ninguém vai ler.
Já sei como vou postar o texto no instagram.
Recapitulando: Antônio precisa comer frutas, tenho trabalho a fazer, o carro está tapando a minha vaga na garagem, os bolsominions já foram embora, porque elite que é elite para na hora do almoço pra comer nos restaurantes ‘top’ do Lourdes. Ligo o rádio, toca Pato Fu. A música me lembra a época em que morei em Uberlândia. “Jesus, bebi demais naquela calourada quando eu tinha vinte anos”. Chego, busco Antônio.
Sim, voltei para revisar o texto.
Antônio reclama, fala que não quer ir, que quer ficar com a avó. Ponho no carro, ela diz coisas na janela, despeço. Antônio chora. Diz que gosta mais dela do que de mim. Há um ano atrás isso me fazia chorar. Hoje digo: “filho, cabe amor no nosso coração. Você pode amar a vovó, a mamãe, o papai. Não precisa amar ninguém mais. Nós também amamos você”. Ele continua me rechaçando, dirijo, ficamos em silêncio.
Buscamos a minha mãe.
Tomamos caldo, Antônio fala que não quer, começa a colorir, “humm mamãe, que cheiro bom”. Senta, come conosco.
Minha mãe deita um pouco, está com a saúde bem debilitada, venho tentando lidar com a preocupação de maneira não paralisante.
Pego o computador, abro o texto, Antônio senta ao meu lado. Pula no meu colo, diz que me ama. Coloco um filme na TV. Ele ignora, começa a tentar chamar a minha atenção, aperta umas teclas do computador. Custo a revisar o texto. Agora mesmo ele disse para a minha mãe que quer fazer bagunça. Ainda querendo atenção. Vou lá, porque né?
Culpa.